sexta-feira, 26 de setembro de 2008


 


O clown é como a sombra

Tenho sob os olhos, entre outras muitas, uma definição do clown feita por meu conterrâneo Alfredo Panzini, no Diccionario Moderno:

"CLOWN - palavra inglesa (pronuncia-se cláun) que quer dizer rústico, rude, torpe, indicando depois quem com artificiosa torpeza faz o público rir.  É o nosso palhaço."

Mas também aqui existe a mesma miserável diferença do termo estrangeiro que enobrece a coisa.  O palhaço é mais de feira e praça, o clown, de circo e palco.  Um bom acrobata é um clown, isto é, quase um artista, e julgará imprópria e ofensiva a expressão palhaço.  Mas clown designa também o palhaço.  O próprio Carducci, defensor do vernáculo, nas prosas polêmicas de Confessioni e Bataglie, capítulo Ça ira, não desdenha a palavra.

Neste tempos de nacionalismo, que direi eu?  Bem, o clown encarna os traços da criatura fantástica, que exprime o lado irracional do homem, a parte do instinto, o rebelde a contestar a ordem superior que há em cada um de nós.

É uma caricatura do homem como animal e criança, como enganado e enganador.  É um espelho em que o homem se reflete de maneira grotesca, deformada, e vê a sua imagem torpe.  É a sombra.

O clown sempre existirá.  Pois está fora de cogitação indagar se a sombra morreu, se a sombra morre.

Para que ela morra, o sol tem de estar a pique sobre a cabeça.  A sombra desaparece e o homem, inteiramente iluminado, perde seus lados caricaturescos, grotescos, disformes.  Diante duma criatura tão realizada, o clown, entendido no aspeto disforme, perderia a razão de existir.  O clown, é evidente, não teria sumido, apenas seria assimilado.  Noutras palavras, o irracional, o infantil, o instintivo já não seriam vistos com o olhar deformador que os torna informes.

Por acaso São Francisco não definiu a si mesmo como jogral de Deus?

Lao Tsé afirmava:  "Quando produzas em pensamento, te ri dele."


O branco e o augusto

Quando digo o clown, penso no augusto.  Com efeito, as duas figuras são o clown branco e o augusto.  O primeiro é a elegância, a graça, a harmonia, a inteligência, a lucidez, que se propõem de forma moralista, como as situações ideais, únicas, as divindades indiscutíveis.  Eis que em seguida surge o aspeto negativo da questão.  Pois dessa forma o clown branco se converte em Mãe, Pai, Professor, Artista, o Belo, em suma, no que se deve fazer.

Então o augusto, que devia sucumbir ao encanto dessas perfeições, se não fossem ostentadas com tanto rigor, se rebela.  Vê as lantejoulas cintilantes, mas a vaidade com que são apresentadas as torna inalcançáveis.  O augusto, que é a criança que faz sujeira em cima, se revolta ante tanta perfeição, se embebeda, rola no chão e na alma, numa rebeldia perpétua.

Essa é a luta entre o orgulhoso culto da razão, onde o estético é proposto de forma despótica, e o instinto, a liberdade do instinto.

O clown branco e o augusto são a professora e o menino, a mãe e o filho arteiro, e até se podia dizer que o anjo com a espada flamejante e o pecador.  São, em suma, duas atitudes psicológicas do homem, o impulso para cima e o impulso para baixo, divididos, separados.

O filme [I Clowns] termina com as duas figuras se encontrando e desaparecendo juntas.  Por que comove essa situação?  Porque as duas figuras encarnam um mito que está dentro de cada um de nós – a reconciliação dos opostos, a unidade do ser.

A dose de dor que existe na guerra contínua entre o clown branco e o augusto não se deve às músicas nem a nada parecido, mas ao fato de presenciarmos a algo que se liga à nossa própria incapacidade de conciliar as duas figuras.  Com efeito, quanto mais procures obrigar o augusto a tocar violino, mais dará soprinhos com o trombone.  O clown branco ainda pretenderá que o augusto seja elegante.  Mas quanto mais autoritária seja essa intenção, mais o outro se mostrará mal e desajeitado.

É o apólogo de uma educação que procura pôr a vida em termos ideais e abstratos.  Mas Lao Tsé dizia com acerto:  Quando produzas um pensamento (= clown branco), te ri dele (=clown augusto).

Outra versão do par

Neste ponto, também podia citar a famosa antítese popular chinesa entre ying e yang, o frio e o sol, a fêmea e o macho, todos os possíveis contrastes.  Podia-se falar de Hegel e da dialética, acrescentar que os augustos são, mais justamente, uma imagem subproletária do pátio dos milagres, com desnutridos, disformes, marginais, capazes talvez de revoltas, não de revoluções.  É provável que o povo sempre os tenha tratado com confiança por causa de sua condição miserável, sentindo-se familiar ao abismo.

Os Fratellini foram os que introduziram um terceiro personagem, o "contre-pitre", parecido ao augusto, mas que se aliava ao patrão.  Era o vigarista de rua, o espião, alcagüete da polícia, o liberado a se mover nas duas zonas, a meio caminho da autoridade e do delito.

Com exceção de François Fratellini, que fazia um aéreo clown branco, cheio de graça e amabilidade, incapaz de usar o tom acre da gozação para um mais fraco, todos os clowns brancos eram homens muito duros.  Diz-se que Antonet, um afamado clown branco, fora de cena nunca dirigiu a palavra a Beby, que era o seu augusto.  O personagem influenciava o homem e vice-versa.  Uma das regras do jogo é que o clown branco tem de ser malvado.  Ele dá bofetadas.

O augusto: - Tenho sede.

O clown branco: - Tem dinheiro?

O augusto: - Não.

O clown branco: - Então não tem sede.

Outra tendência do clown branco é explorar o augusto, não apenas como objeto de burla, mas como serviçal.  Neste ponto, é característico este início:  - Não tens que fazer nada, eu faço tudo.  – E o clown branco manda o augusto pegar as cadeiras, pondo-lhe a fela sob o traseiro.

O clown branco é um burguês, que de entrada procura surpreender com sua aparência de rico, poderoso, maravilhoso.  O rosto é branco, espectral, franze as sobrancelhas, a boca é assinalada por um só traço, duro, antipático, frio, desigual.  Os clowns brancos sempre competiram para ficar com o traje mais luxuoso na luta dos figurinos.  Célebre foi Theodore, que possuía uma roupa para cada dia do ano.

O augusto, pelo contrário, faz um tipo único que não muda nem pode mudar de roupa.  É o mendigo, o menino, o esfarrapado...

A família burguesa é uma junta de clowns brancos, em que a criança se vê relegada à condição de augusto.  A mãe diz:  Não faças isso, não faças aquilo...  Quando se convidam os vizinhos e se pede à criança que diga uma poesia – Mostra a esses senhores como... – é uma típica situação de circo.

 

chuvas






Chove. Que fiz eu da vida ?

 
 
Chove. Que fiz eu da vida?  
Fiz o que ela fez de mim...  
De pensada, mal vivida...  
Triste de quem é assim! 

Numa angústia sem remédio  
Tenho febre na alma, e, ao ser,  
Tenho saudade, entre o tédio,  
Só do que nunca quis ter... 

Quem eu pudera ter sido,  
Que é dele? Entre ódios pequenos  
De mim, estou de mim partido.  
Se ao menos chovesse menos!  
   
 

F.Pessoa, 23-10-1931